Mundial de Clubes
O Flamengo foi o primeiro clube brasileiro a vencer o Mundial de Clubes no Japão. Acompanhe a história dessa conquista, a mais expressiva da história rubro-negra, na crônica do colaborador Mauricio Neves.
Domingo, 6 de dezembro de 1981. A noite caía no Maracanã e o time do Flamengo havia acabado de conquistar o campeonato estadual. Ao apito final do árbitro Alvimar Gaspar dos Reis, Jorge Curi ressaltou o tempo de recuperação e passou a palavra para os repórteres Kleber Leite e Loureiro Neto: - Quarenta e nove, quatro minutos, todo mundo flamengando, Kleber e Loureiro? Já dentro do campo de jogo, Kleber Leite responde e passa a palavra a Zico: - Tá flamengando e Zico é campeão... O camisa 10 da Gávea, ainda ofegante, resumiu o sentimento de todos os flamengos do mundo: - É, só dá Mengão, realmente, é uma equipe que merece, com toda a justiça porque se teve uma equipe que mereceu durante toda a temporada foi o Flamengo. A torcida começou a gritar o nome de Coutinho, falecido dez dias antes. Júnior amarrou a sua camisa no braço, e dizia que aquela camisa seria do filho de Coutinho. Zico organizou a volta olímpica, com Nunes ajudando a carregar a taça, e aos poucos os gritos que saudavam Coutinho e comemoravam o título foram se transformando em uma oração que fizeram de cem mil vozes uma só voz: - Mengão, Mengão, Mengão, só falta o Japão! Mengão, Mengão, Mengão, só falta o Japão! Mengão, Mengão, Mengão, só falta o Japão!
Só faltava o Japão. Faltava algo para o time que vinha de um mês intenso, de clássicos regionais, de uma batalha de três jogos contra um time sangrento, de uma decisão de campeonato carioca em três jogos extenuantes. Faltava ao melhor time do mundo provar mais uma vez que era o melhor time do mundo. A prova definitiva, incontestável, do outro lado do mundo. Só faltava o Japão.
A viagem longa, com escala em Los Angeles, começou silenciosa. Aos poucos foram surgindo as primeiras conversas, mas pouco havia a ser dito. – Nós nos conhecíamos pelos olhares. Estávamos esfolados por fora, cansados, mas por dentro mais fortes do que nunca. Não precisávamos conversar mais. O que todo mundo queria era que chegasse logo a hora do jogo. Nós sabíamos o que precisávamos fazer: jogar a nossa bola de sempre, relembra Lico, titular daquele time há pouco mais de um mês. Já em Tóquio, o tom continuava sendo esse. Na saída para o estádio, ainda no Hotel Takanawa Prince, Zico falou a todos: - Olha, gente, hoje mais que nunca temos de dar uma prova de dedicação, de desprendimento, Ninguém tentará coisas impossíveis, nem vai querer provar que sabe mais que o companheiro. Hoje temos de ser Flamengo como nunca.
O ar de superioridade dos ingleses do Liverpool de antes do jogo durou um minuto, tempo que Zico levou para aplicar um drible desmoralizante com um toque de primeira. O que se viu a partir de então foi um time de camisas vermelhas correndo inutilmente na tentativa de parar o toque de bola, os dribles e a movimentação constante do Flamengo, que criava espaços na defesa inglesa. Em um desses espaços enfiou-se Nunes, aos doze minutos, para receber um lançamento mágico de Zico e ficar de frente para o goleiro Gobbrelaar.
A torcida do Flamengo já sabia do desfecho mesmo antes de a bola entrar. Passe de Zico para Nunes no vazio, Nunes em desabalada carreira fazendo tremer o gramado, um toque rápido na saída do goleiro. Mas Nunes inovou. Um toque único, como sempre, mas desta feita tão leve que após desviar-se do goleiro a bola seguiu lentamente rumo ao gol, quicando devagar no gramado amarelado, queimado de tanto frio. O toque lento de Nunes não havia cruzado a linha e o centroavante já corria de braços abertos em direção a Júnior. Um gol lento, para que o atordoado Liverpool pudesse entender que estava diante do melhor time do mundo, do melhor Flamengo de todos os tempos.
Mister Paisley, técnico do Liverpool, diria após o jogo: - Ainda não entendi de onde surgiu aquele buraco no primeiro gol. E só no videoteipe os ingleses entenderiam a manobra rubro-negra. Começou com Andrade, que do campo de defesa lançou a Nunes na esquerda, recuado. Nunes tabelou curto com Adílio e retornou até o meio de campo, como se estivesse encurralado pelo adversário, que caiu na armadilha preferencial de João Danado. Retornando até a linha média, Nunes girou na frente do marcador e deixou de calcanhar para Mozer, que entregou a Zico. Os marcadores que Nunes mobilizara avançaram então contra o melhor jogador do mundo, enquanto Nunes corria rumo ao espaço vazio que ele mesmo criara.
O lançamento caiu suave atrás do último zagueiro, para o lento gol de João Danado Nunes, o centroavante dos abalos sísmicos na área inimiga, 9 na camisa, 9 na Escala Richter. A manobra de recuo e avanço deixou Paisley assombrado: - Vocês jogam um jogo que nós desconhecemos.
Seguiu o Flamengo com o jogo que os ingleses e o mundo prestes a ser conquistado desconheciam. Com a área tomada pelo time do Liverpool, Tita bateu um escanteio da ponta direita pelo alto, para fora da área, com a bola caindo na meia esquerda. Aparentemente um erro de execução, mas era outra armadilha. Lá estava Júnior, que sem deixar a bola cair emendou um voleio que saiu próximo ao ângulo direito de Grobbelaar.
Pouco depois, McDermott botou Tita no chão com um pontapé. Falta frontal ao gol. Zico bateu por baixo, Lico pressionou no rebote e a bola sobrou para Adílio marcar e correr na direção das tribunas, jogando beijos para a sua esposa. Outra vez Paisley precisaria do replay: Nunes fez as vezes de quinto homem da barreira, e foi por ali que passou o chute de Zico, no espaço criado mais uma vez pelo Artilheiro das Decisões.
Como se precisasse de mais gols, o Flamengo continuou agredindo. Leandro tocou a Adílio pelo meio que investiu contra seus marcadores e tocou a Zico. As opções para as tabelas curtas eram Adílio, Lico e Tita, mas cadê Nunes? Está correndo rumo ao espaço vazio na ponta direita, mais um terremoto na área inglesa, mais uma vez o chão tremendo sob os pés de Gobbrelaar. Agora, aos costumes, toque rápido na saída do goleiro. O jogo não estava na metade e as capas das edições extras dos maiores jornais do Brasil tomavam o rumo das gráficas para estampar que o Flamengo era indiscutivelmente o melhor dentre todos os times de futebol, que reinventava naquele gramado amarelado o jogo inventado pelos ingleses e que aqueles jogadores de camisas brancas e longas mangas rubro-negras eram os campeões mundiais de futebol.
E os campeões, como se quisessem preservar a perfeição da obra que construíram no primeiro tempo, passaram o resto do jogo exibindo todo o repertório de dribles, passes, inversões, domínio, lances de efeito e triangulações que só aquele time sabia fazer. Foi Zico que deu um drible de letra entre dois ingleses, foi Tita tirando Johnston para dançar, foi Andrade que chutou de muito longe, de curva, para um pequeno milagre de Gobbrelaar.
O jogo acabou. O choro emocionado do supervisor Domingos Bosco contrastava com o sorriso tranqüilo dos jogadores. A torcida com muitos japoneses aplaudia os artistas do espetáculo como se estivesse em um teatro. Então os jogadores perceberam que a missão ainda não estava cumprida. Se não faltava mais o Japão, se não faltava provar mais nada a ninguém, faltava voltar ao Brasil, para fazer o melhor time do mundo cair nos braços da melhor e maior torcida do mundo.